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29/06/2011

Conversa com o autor

Verso do livro
Azevedo, Ricardo. Contos de espanto e alumbramento. São Paulo : Scipione , 2010.
Desenho em estilo xilogravura popular, que remetem o leitor para a literatura de cordel

Os estudiosos costumam considerar que o conto popular e o conto de encantamento – também chamado de maravilhoso, ou de fadas, e conhecido no Nordeste por história de trancoso – são a mesma coisa. Em outras palavras, o maravilhoso e o popular, neste caso, se misturariam completamente. Por esse viés, as outras formas narrativas populares seriam, por exemplo, casos, anedotas, lendas ou mitos. Por lendas, é preciso entender narrativas de eventos, mágicos ou não, que teriam acontecido neste mundo, mas há muito tempo. Já mitos são, em princípio, como se sabe, narrativas sagradas, relatando fatos ocorridos num tempo ou mundo anterior ao nosso, que explicam e tornam interpretáveis a vida e o mundo. As narrativas míticas sempre buscam responder a perguntas como “quem fez e como foi feito o mundo”, “por que o homem é mortal, sexuado e precisa trabalhar”, “como surgiram o homem, os costumes, os animais e as plantas” e assim por diante. Mitos pressupõem necessariamente fé.
Longe de mim imaginar que mitos sejam noções arcaicas ou pré-modernas. Para Mircea Eliade, por exemplo, a “higiene” seria um mito moderno. Afinal, a obtenção da higiene absoluta levaria o homem à extinção, derrubado pelo primeiro vírus que aparecesse. A higiene é, portanto, um bem relativo e não, como costuma ser representada, um bem total, ou seja, um mito. O povo sempre soube disso, tanto que cunhou ditados como “o que não mata engorda”, “jacaré com fome até barro come” ou “quem anda na linha o trem esbagaça”. Uma noção abstrata como “liberdade”, por outro lado, pode ser considerada outro mito moderno. Se tratada como valor absoluto, ou seja, se não relativizada, levaria à guerra de todos contra todos. O tema, como se vê, é complexo e imenso.
Em todo caso, muitos pesquisadores acreditam que os contos populares nada mais são do que ruínas de antigos mitos, narrativas que perderam seu caráter de explicação religiosa e sagrada mas continuaram vivas por serem muito bonitas, ou por tratarem de temas humanos relevantes. De contador em contador, teriam virado contos de encantamento.
Se examinarmos esses contos, veremos que tendem a ser construídos a partir de um diálogo entre o “maravilhoso” – feitiços, monstros, encantos, instrumentos mágicos e amigos sobrenaturais – e os fatos da “vida concreta” – paixões entre homens e mulheres, mentiras, heróis em busca do autoconhecimento, inveja, egoísmo, amores, ardis, traições, violências e transgressões de toda ordem.
Em muitos contos, a preponderância fica por conta do “maravilhoso”. Tenho tentado resgatar esse rico material em livros como Meu livro meu folclore, Armazém do folclore, Contos de enganar a morte e No meio da noite escura, tem um pé de maravilha! , entre outros. Refiro-me particularmente a narrativas como “Três namorados da princesa”, “A quase morte de Zé Malandro”, “A história do príncipe Luís”, “O príncipe encantado no reino da escuridão” e “O rei que ficou cego”, por exemplo.
Nesses mesmos livros, porém, há casos de contos em que o “maravilhoso” tende a ser menos relevante ou mesmo a desaparecer. Cito dois casos: “O filho mudo do fazendeiro”, no qual o “encantamento” surge somente nas histórias narradas pela personagem, e “Coco Verde e Melancia”, onde ele simplesmente inexiste.
O livro Contos de espanto e alumbramento traz nove versões de contos populares em que o diálogo entre o “maravilhoso” e a “vida concreta” tende às instâncias desta última.
Neles, o leitor certamente encontrará heróis enfeitiçados, animais mágicos, monstrengos e encantamentos, mas notará que os tema da transgressão, da paixão, da violência, da inveja, do amor, e da sexualidade – assuntos da vida concreta – são preponderantes e estão delineados com grande nitidez.
 Talvez seja esse o diferencial dos contos populares recontados neste livro.
Concluindo, é preciso dizer que, mesmo nos contos tipicamente maravilhosos, o que resiste e persiste por trás de tudo são sempre e sempre os assuntos da vida humana concreta e situada.
Trazer esses temas à baila através da ficção e da poesia é o que de fato nos faz abraçar e amar a literatura, seja ela popular ou não.
Ricardo Azevedo

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